segunda-feira, 18 de julho de 2011

CONTRIBUIÇÃO DO PROFESSOR CARLOS ODILON

O crescimento moderno da a-mundanidade [impossibilidade de uma comunhão dos seres humanos com o cosmo e entre si – N.do Editor], o declive de todo entre humano [distância que separa, mas ao mesmo tempo possibilita o encontro – N. do Editor], também pode ser descrito como a propagação do deserto.

Quem primeiro reconheceu que vivemos e nos movemos em um mundo desértico foi Nietzsche, que também foi quem cometeu o primeiro erro decisivo pelo fato de o diagnosticar. Assim como todos os que vieram depois dele, Nietzsche pensava que o deserto está dentro de nós. Revelava-se assim a si mesmo não só como um dos primeiros habitantes conscientes do deserto, mas também e por isso mesmo, como a vítima da sua mais terrível ilusão.

A psicologia moderna é psicologia do deserto: quando perdemos a faculdade de julgar, “de sofrer e de condenar”, começamos a pensar que há algo equivocado dentro de nós se não pudermos viver sob as condições do deserto. Na medida em que a psicologia trata de “ajudar-nos”, ajuda-nos a “ajustar-nos” àquelas condições, e nos tira a nossa única esperança, a saber, de que nós, que não somos do deserto, mesmo que nele vivamos, somos capazes de transformá-lo em um mundo humano. A psicologia põe tudo ao contrário: precisamente porque sofremos sob as condições do deserto, ainda somos humanos e ainda estamos intactos; o perigo consiste em que nos convertamos em verdadeiros habitantes do deserto e nos sintamos cômodos nele. O maior perigo do deserto consiste em que há tempestades de areia; em que o deserto nem sempre é tranqüilo como um cemitério. Ali onde, afinal de contas, tudo continua sendo possível, pode desencadear-se um movimento autônomo. Tais tormentas de areia são os movimentos totalitários, cuja característica principal consiste em que se ajustam extraordinariamente bem às condições do deserto. De fato, não contam com nada mais, e por isso parecem ser a forma política mais adequada à vida do deserto. Ambos, a psicologia – a disciplina para ajustar a vida humana ao deserto – e os movimentos totalitários – as tempestades de areia, nas quais o que é tranqüilo como a morte explode repentinamente em pseudo-ação – proporcionam o perigo iminente às duas faculdades humanas que pacientemente nos capacitam para transformarmos o deserto em vez de nos transformarmos a nós mesmos: as faculdades reunidas de ação e paixão. O certo é que quando somos alcançados pelos movimentos totalitários ou pelos ajustes da psicologia moderna sofremos menos; perdemos, porém, a faculdade de sofrer e, com ela, a virtude de resistir. E só de quem consegue resistir ao padecimento de viver sob as condições do deserto podemos esperar que se arme de coragem necessária que se encontra na raiz de toda ação, da coragem que converte um ser humano em um ser atuante.

As tormentas de areia ameaçam também estes oásis no deserto, sem os quais ninguém de nós ali poderia resistir, enquanto a psicologia apenas procura acostumar-nos à vida no deserto, de tal forma que já não sintamos a necessidade dos oásis. Os oásis constituem todos estes domínios da vida que existem independentemente, ou pelo menos em grande medida independentemente, das circunstâncias políticas. O que nelas desafina é a política, ou seja, nossa experiência plural, mas não o que podemos fazer e criar na medida em que existimos no singular: no isolamento do artista, na solidão do filósofo, na relação inerentemente a-mundana entre seres humanos, tal como existe no amor e às vezes na amizade, “quando um coração se dirige diretamente a outro, como na amizade, ou quando o entre, o mundo, acende em chamas como no amor”. Sem a intangibilidade destes oásis não saberíamos como respirar. E os especialistas em ciência política deveriam saber disso. Se quem deve gastar sua vida no deserto, procurando fazer isso ou aquilo, preocupando-se constantemente pelas suas condições, não sabe como usar os oásis, se converterão em habitantes do deserto, mesmo sem a ajuda da psicologia. Por outras palavras, os oásis secarão se não os mantivermos intactos, e eles não são meros lugares de relax, mas as fontes dispensadoras de vida que nos permitem viver no deserto sem nos reconciliarmos com ele.

O perigo contrário é muito mais freqüente. Seu nome habitual é escapismo: fugir do mundo do deserto, da política, para o que quiser, é uma forma menos perigosa e mais refinada de aniquilar os oásis que as tormentas de areia, que ameaçam sua existência, por assim dizê-lo, a partir de fora. Tratando de fugir, transportamos a areia do deserto para os oásis, “assim como Kierkegaard, ao procurar escapar da dúvida, introduziu sua dúvida na religião quando deu o salto para a fé”. A falta de resistência, o fracasso em reconhecer e resistir à dúvida como uma das condições fundamentais da vida moderna, introduz a dúvida no único âmbito no qual nunca teve que entrar: o âmbito religioso; ou, de modo mais restrito, no âmbito da fé. Esse é apenas um exemplo para que vejamos o que fazemos quando procuramos fugir do deserto. Porque aniquilamos os oásis dispensadores de vida quando vamos a eles com a intenção de fugir, parece às vezes que tudo conspira para generalizar as condições do deserto.

Também isso é uma ilusão. Em última análise, o mundo humano é sempre o produto do amor mundi [amor do mundo] do ser humano, um artifício humano cuja imortalidade potencial está sempre sujeita à mortalidade de quem o constrói e à natalidade de quem começa a viver nele. O que Hamlet disse é sempre verdade: “O tempo está fora de ordem. Maldita sorte a minha ter nascido para pô-lo em ordem!” Neste sentido, na necessidade que tem o mundo dos que começam para que possa ser começado de novo, o mundo é sempre um deserto. Sem dúvida, a partir das condições de a-mundanidade que apareceram pela primeira vez na Idade Moderna – a-mundanidade que não deveria ser confundida com a ultra-mundanidade cristã – nasceu a questão de Leibniz, Schelling e Heidegger: por que existe algo em lugar de nada? E a partir das condições específicas de nosso mundo contemporâneo que nos ameaça não só para que não-exista-nada, mas também para que não-exista-ninguém, pode surgir a pergunta: por que existe alguém em lugar de ninguém? Estas questões podem parecer niilistas, mas não o são. Pelo contrário, são as questões anti-niilistas que se colocam em uma situação objetiva de niilismo, onde o fato de não-existir-nada e aquele de não-existir-ninguém ameaçam destruir o mundo.

cf. ARENDT, Hannah. Del desierto y los oasis. Buenos Aires, La Nación, Suplemento Cultura, 19.11.2006, p. 01

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